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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A estratégia de transformação social em Malatesta.

A proposta de transformação social em Malatesta tem como guia o anarquismo. Sendo este entendido pelo italiano não como sistema filosófico, mas como ideologia, possuindo então o objetivo transformar a realidade do sistema capitalista e estatista em socialismo libertário, ou como ele se referia, em “anarquia”, sendo ela entendida como “sociedade organizada sem autoridade”. Dessa maneira, o “anarquismo é o método para realizar a anarquia”.[1]

Assim compreendido, o anarquismo de Malatesta é voluntarista, ou seja, não se baseia na concepção de que o socialismo, ou mesmo a anarquia, é inevitável, ou uma conseqüência obrigatória do desenvolvimento da sociedade. Baseia-se, ao invés disso, na concepção de que só a vontade organizada do povo é capaz de produzir a transformação social necessária, realizando a revolução social e abrindo caminho ao socialismo com liberdade.
Para Malatesta, o socialismo é um sistema em que “ninguém possa explorar o trabalho de outrem, graças à monopolização dos meios de produção; que ninguém possa impor sua própria vontade a outros por meio da força bruta ou, o que é pior, graças à monopolização do poder político”.[2] A liberdade, ou “liberdade social” é a “igual liberdade para todos, e uma igualdade de condições que possa permitir a todos e a cada um agir como bem entende, tendo, como único limite, o que impõem as necessidades naturais inelutáveis e a igual liberdade de todos”.[3] 
Malatesta, para a realização desta transformação, concebeu uma certa estratégia que buscava encontrar os meios necessários para que chegasse ao fim desejado. Tratou, insistentemente, da questão da organização, polemizando com anarquistas individualistas e anti-organizacionistas, argumentando que “permanecer isolado, agindo ou querendo agir cada um por sua conta, sem se entender com os outros, sem preparar-se, sem enfeixar as fracas forças dos isolados, significa condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação”[4] Para ele, o remédio contra a exploração, e mesmo contra o isolamento, é a organização. 
Concebida como “coordenação de forças com um objetivo comum, e obrigação de não promover ações contrárias a este objetivo”[5] a organização é a única forma de articular o povo, transformando a força que nele está latente em força real. Com organização, pode haver aumento progressivo desta força social, oferecendo a possibilidade de imprimir à sociedade tal transformação social desejada.
Desta forma, a organização é pensada em quatro perspectivas “a organização em geral, como o princípio e condição da vida social, hoje, e na sociedade futura; a organização do partido anarquista e a organização das forças populares.”[6] A organização do sistema atual, ou seja, o ponto de partida, a organização da sociedade futura, ou seja, o ponto de chegada. Neste esquema estratégico, entram a organização das forças populares e do próprio anarquismo como meios de se sair de onde está para se chegar onde se deseja. 
Para tanto, Malatesta propôs um modelo de organização anarquista que fosse concebida como “o conjunto dos indivíduos que têm um objetivo em comum e se esforçam para alcançá-lo, é natural que se entendam, unam suas forças, compartilhem o trabalho e tomem todas as medidas adequadas para desempenhar esta tarefa”[7]. Organização esta, que trabalha com certa disciplina, entendida como “a coerência com as idéias aceitas, a fidelidade aos compromissos assumidos, é se sentir obrigado a partilhar o trabalho e os riscos com os companheiros de luta”[8]. Esta organização está articulada no âmbito político e ideológico e tem como objetivo a aplicação de uma política revolucionária nos movimentos populares, que são fruto da luta de classes, garantindo que seus meios de luta apontem para os fins desejados.
Para tanto, segundo o italiano, a organização anarquista deve buscar inteiração com estes movimentos populares, que na sua época eram mais claramente identificados nos sindicatos. Este âmbito social – constituído pelos movimentos sociais ou “movimentos de massa”, como eram conhecidos – se devidamente organizado, pode promover a revolução social. Apesar disso, recomendava Malatesta que estes movimentos não devem ser “ideologizados” pelos anarquistas – ele não defendia, por exemplo, sindicatos anarquistas – mas sim, serem o espaço privilegiado de propaganda ideológica do anarquismo. Portanto, uma inteiração entre a organização anarquista e os movimentos populares não anarquistas seria inevitável. 
A partir desta inteiração, escreveu Malatesta, “queremos agir sobre ela [a massa] e impeli-la ao caminho que acreditamos ser o melhor, mas como nosso objetivo é libertar e não dominar, queremos habituá-la à livre iniciativa e à livre ação”.[9] Considerando a organização anarquista uma organização de minoria ativa, que atua no seio dos movimentos populares de forma antiautoritária, Malatesta defende sua posição:
"Não queremos ‘esperar que as massas se tornem anarquistas’ para fazer a revolução; tanto mais de que estamos convencidos de que elas nunca se o tornarão se inicialmente não derrubarmos, pela violência, as instituições que as mantêm em escravidão. Como precisamos do concurso das massas para constituir uma força material suficiente, e para alcançar o nosso objetivo específico que é a mudança radical do organismo social graças à ação direta das massas, devemos nos aproximar delas, aceitá-las como elas são e, como parte das massas, fazê-las ir o mais longe possível. Isso, se quisermos, evidentemente, trabalhar de fato para realizar, na prática, nossos ideais, e não nos contentar em pregar no deserto, para a simples satisfação de nosso orgulho intelectual."[10]
Portanto, desta forma, é inevitável um confronto do anarquismo, manifesto por meio da organização anarquista, com a realidade da luta de classes, onde estão pessoas de ideologias diferentes. Assim, este “anarquismo social” de Malatesta, longe de fechar-se em si mesmo, amplia-se, buscando influenciar os movimentos e lutas sociais o quanto for possível, por meio da propaganda, fazendo com que funcionem “da maneira mais libertária possível”. Isto significa, na prática, influenciá-los às práticas classistas, combativas, autônomas, de ação direta e democracia direta. 
Nesta inteiração do âmbito político com o social, Malatesta recomendava aos anarquistas não confundirem os meios (os movimentos populares) com os fins (o socialismo libertário). Dizia ele que “o movimento operário não é mais do que um meio – embora não há dúvida de que é o melhor meio de que dispomos. Mas eu me recuso a aceitar esse meio como um fim.”[11] Os anarquistas devem, portanto, “seguir sendo anarquistas manter-se sempre em entendimento com os anarquistas e lembrar que a organização operária não é um fim, mas simplesmente um dos meios, por importante que seja, para preparar o advento da anarquia”[12]. Por este motivo, parte do trabalho da organização anarquista, quando em contato com os movimentos populares, é defender uma visão de longo prazo, ou seja, um projeto político revolucionário que faça do movimento um meio para a sociedade futura e não um fim em si mesmo. No entanto, este meio constituído movimentos em luta, ao invés de buscar somente um fim distante, do socialismo libertário, é também responsável pela mobilização que deve conquistar e promover a melhoria das vidas do povo. Assim, são incitados “os trabalhadores a querer impor todas as melhorias possíveis e impossíveis, e é por isso que gostaríamos que eles não se resignassem a viver em más condições hoje, esperando o paraíso futuro”.[13] Para que estas conquistas aconteçam, Malatesta recomenda: 
"é preciso arrancar do governo e dos capitalistas todas as melhorias de ordem política e econômica que podem tornar menos difíceis para nós as condições da luta e aumentar o número daqueles que lutam conscientemente. É preciso, portanto, arrancá-las por meios que não impliquem o reconhecimento da ordem atual e que preparem o caminho ao futuro."[14]
A luta de classes, expressa na luta dos movimentos populares, pode então melhorar imediatamente a vida daqueles que estão em luta, mas também pode ser a força que aponta para a revolução social.
Malatesta colocava ser impossível a separação da revolução social e da violência. Enfatizava, que esta revolução, “conduzida como a concebem os anarquistas, é a menos violenta possível; ela procura interromper toda violência tão logo cesse a necessidade de opor a força material à força material do governo e da burguesia”[15]. Tão logo o funcionamento do socialismo libertário esteja garantido, a violência deverá ser interrompida. Continua Malatesta sobre a violência, enfatizando:
"Os anarquistas só admitem a violência como legítima defesa; se hoje eles são a favor da violência é porque consideram que os escravos estão sempre em estado de legítima defesa. Mas o ideal dos anarquistas é uma sociedade na qual o fator violência terá desaparecido completamente e este ideal serve para frear, corrigir e destruir este espírito de violência que a revolução, como ato material, teria a tendência a desenvolver."[16] 
Grande parte dos escritos de Malatesta busca ainda advertir para os meios equivocados de se buscar a transformação social. Em especial, como foi muito colocado por toda tradição clássica anarquista, a incapacidade de o Estado ser um meio adequado para a transformação social, posição defendida pela escola autoritária do socialismo durante toda a história. Independente se a “conquista” do Estado é feita pela revolução ou por meios reformistas, o fato é que Malatesta também defendeu, assim como Bakunin no seio da AIT, que a partir do momento que se conquista o Estado, aqueles que querem ser protagonistas da transformação, terminam como uma nova classe de exploradores. Em relação aos revolucionários, Malatesta fez críticas à concepção autoritária de socialismo, que considera o Estado e a ditadura como meios de se chegar ao comunismo. Para Malatesta, a posição dos comunistas autoritários sustenta “a ditadura de um partido, ou melhor, dos chefes de um partido; é uma ditadura verdadeira, no sentido próprio do termo, com seus decretos, suas sanções penais, seus agentes de execução e, sobretudo, sua força armada”.[17] 
Em relação à estratégia eleitoral dos socialistas reformistas, colocou que “somos firmemente contrários a toda participação nas lutas eleitorais e a toda colaboração com a classe dominante; queremos aprofundar o abismo que separa o proletariado do patronato e tornar a luta de classes cada vez mais aguda”[18]. Os reformistas, quando se propuseram à conquista do poder político do Estado pelas eleições, “não podiam senão moderar cada vez mais seu programa, pôr-se a estabelecer relações de colaboração mais ou menos disfarçada com as classes burguesas, procurar amigos e proteção nas esferas governamentais, sufocar o espírito revolucionário que despertavam nas massas”.[19] 
Assim, por meio da discussão dos meios adequados e não adequados para a transformação social desejada pelos anarquistas, Malatesta defende a máxima libertária, da coerência entre fins e meios, quando escreve que “os fins e os meios estão intimamente ligados, sem dúvida nenhuma, se bem que a cada fim corresponde, de preferência, tal meio, ao invés de tal outro; assim, também, todo meio tende a realizar o fim que lhe é natural, inclusive fora da vontade daqueles que empregam este meio, e contra ela”.[20] 

Nada mais atual, se observarmos com cuidado a história.

Felipe Corrêa

Notas::

1. Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontà, 1 de setembro de 1925. In: Vernon Richards. Malatesta: pensamiento y acción revolucionarios. Buenos Aires: Anarres, 2007 p. 21.
2. Idem. “Socialismo e Anarquia”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortez, 1989 p. 7. 
3. Idem. “Enquanto Isso...”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 101. 
4. Idem. “A Organização II”. In: Escritos Revolucionários. São Paulo, Imaginário, 2000 p. 55.
5. Ibidem. p. 59-60.
6. Idem. “A Organização I”. In: Escritos Revolucionários p. 49.
7. Idem. “A Organização II”. In: Escritos Revolucionários p. 55.
8. Idem. “Ação e Disciplina”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 24. 
9. Idem. “Enfim! O que é a ‘Ditadura do Proletariado’”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 87. 
10. Idem. “A Propósito da Revolução”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 55. 
11. Idem. “Sindicalismo: A Crítica de um Anarquista”. In: George Woodcock (org). Os Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 1998 p. 208.
12. Idem. “Los Anarquistas y los Movimientos Obreros”. Excerto de Pensiero e Volontà, 16 de abril de 1925. In: Vernon Richards. Malatesta: pensamiento y acción revolucionarios p. 122. 
13. Idem. “Quanto Pior Estiver, Melhor Será”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 67.
14. Idem. “‘Idealismo’ e ‘Materialismo’”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 141. 
15. Idem. “Uma Vez Mais sobre Anarquismo e Comunismo”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 70.
16. Ibidem.
17. Idem. “Carta a Luigi Fabbri sobre a ‘Ditadura do Proletariado’”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 60.
18. Idem. “Os Anarquistas e os Socialistas – Afinidades e Oposições”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 32.
19. Idem. “No Campo Socialista”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 45. 
20. Idem. “Socialismo e Anarquia”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 6.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Bakunin e o Anarquismo

Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876) foi um revolucionário russo que contribuiu, determinantemente, em teoria e prática, para o desenvolvimento do anarquismo na Europa ocidental e que teve influência significativa nos rumos do movimento de trabalhadores, em nível mundial.

Bakunin nasceu em uma família de nobres russos, foi educado em casa e seguiu aos 14 anos para a carreira no exército, abandonando-a em 1835. Vai a Moscou, onde participa do círculo de Stankevitch, apaixonando-se pelo romantismo e pelo idealismo alemão, especialmente por Fichte e Hegel. Em 1840, vai a Berlim integrando-se à esquerda hegeliana e publicando artigos. Converte-se ao comunismo e toma contato com a causa dos eslavos, ingressando na luta contra o imperialismo. Influencia-se na relação com P.-J. Proudhon e tem contato com Marx. Participa, em 1848, dos levantes na França e da Insurreição de Praga, e, em 1849, prepara a insurreição da Boêmia e destaca-se como comandante militar do levante de Dresden. Preso, permanece na prisão e no exílio com trabalhos forçados de 1849 a 1861, quando foge, chegando a Londres. Logo se integra à vida política, escrevendo e atuando; vai, em 1865, para a Itália, onde desenvolve intenso trabalho de propaganda e organização e funda a Fraternidade Internacional, uma organização política secreta. Participa dos Congressos da Liga da Paz e da Liberdade, em 1867 e 1868 e, quando a maioria dos membros da Liga nega-se a aceitar o programa socialista, federalista e antiteísta que propunha, rompe, fundando a Aliança da Democracia Socialista. É somente em meados dos anos 1860 que Bakunin adere completamente ao anarquismo, que se consolida com sua entrada na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), ou "Primeira Internacional". Produz, nesse momento, diversos escritos e envolve-se nas discussões de seu tempo. Exerce ampla influência na AIT, especialmente nos países latinos. Ameaçando a hegemonia de Marx, é expulso em 1872, quando funda, com o setor majoritário da AIT, a Internacional "Antiautoritária". Participa da insurreição da Bolonha em 1874 e, ao final da vida, retira-se da política, falecendo na Suíça em 1876.

Os aspectos destacados neste texto enfocarão com mais profundidade elementos da última fase de Bakunin, já nos anos 1860, em cujo período converteu-se ao anarquismo.


OS PONTOS DE PARTIDA

Bakunin possui, como base de sua teoria, uma série de concepções filosóficas que foram sendo elaboradas ao longo de sua vida, desde o período de juventude, quando adere ao hegelianismo de esquerda. Dentre essas concepções, pode-se destacar: a liberdade, a dialética, o materialismo, a ciência e a ideologia.
Toda a sua teoria está baseada no conceito de liberdade, presente ao longo de toda a sua obra. Polemizando com os filósofos do liberalismo, Bakunin nega que o indivíduo venha à sociedade livre, no momento de seu nascimento, tornando-se oprimido pela coletividade ao longo do tempo - idéias que serão desenvolvidas por filósofos como Rousseau e Mill. Para Bakunin, a liberdade não é o ponto de partida do indivíduo, mas o ponto de chegada. Desde sua mais antiga existência, a luta dos homens teria sido, primeiramente, uma luta contra a natureza, em que eles buscaram superar sua animalidade, negando-a e chegando à humanidade, que se caracteriza pela capacidade de reflexão, abstração, e pela razão, ou seja, pela capacidade de combinar idéias em uma forma de pensamento que possui necessariamente relação com a ciência - para forjar-se como humanidade, uma das bases dos homens foi a idéia de Deus. O curso desta evolução, para Bakunin, seria que humanidade passasse à liberdade, pela revolta contra as condições de escravidão do homem - que se reproduziam na economia, na política e na religião. Bakunin coloca que o homem "partiu da escravidão animal, e atravessando a escravidão divina, termo transitório entre sua animalidade e sua humanidade, caminha hoje rumo à conquista e à realização da liberdade humana."[1]

A sociedade, a coletividade, neste sentido, não seria um empecilho para a liberdade, mas uma condição de sua própria realização. A liberdade individual, portanto, só pode existir dentro da liberdade coletiva já que "ser livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal por um outro homem, por todos os homens que o circundam". Só é possível considerar-se livre na presença e em relação a outros homens; além disso, essa perspectiva coletiva da liberdade impede que uma pessoa seja livre sozinha: "só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres".[2] Finalmente, a liberdade, para Bakunin, necessariamente implicaria igualdade e isso coloca um vínculo explícito entre liberdade e socialismo; para ele não existe liberdade plena sob o capitalismo, o Estado ou qualquer outro tipo de dominação, e a igualdade, fundamentalmente econômica, é condição prévia para o desenvolvimento da liberdade. Ele enfatiza que embora seja "partidário da liberdade, essa condição primeira da humanidade, penso que a igualdade deve estabelece-se no mundo pela organização espontânea do trabalho e da propriedade coletiva, das associações produtoras livremente organizadas e federalizadas nas comunas, e pela federação igualmente espontânea das comunas, mas não pela ação suprema e tutelar do Estado"[3].

Outra concepção filosófica que norteia toda a teoria de Bakunin é sua concepção de dialética, forjada ainda nos anos 1840, quando ele era um hegeliano de esquerda, revolucionário, mas ainda não anarquista. Para Bakunin a história - o desenvolvimento de maneira geral - seria determinada a partir de um movimento dialético para o qual a negação teria um papel fundamental: ela seria uma forma de recusar a realidade, permitindo que surgissem novas idéias, capazes de conceber a transformação dessa realidade rumo à liberdade. Essa dialética, ou seja, a
contradição, é, assim, a fonte do movimento e do desenvolvimento histórico. Fundamentando-se em Hegel, o artigo A Reação na Alemanha de 1842 apresenta duas contribuições fundamentais para sua concepção de dialética; a primeira, de uma interpretação de Hegel que constituiria as bases de uma transformação revolucionária; a segunda, de uma dialética que hegeliana que se diferencia da dialética triádica clássica - representada pelos elementos tese, antítese e síntese.
Bakunin propunha uma dialética baseada em somente dois elementos, um positivo e outro negativo - naquele caso analisado, o partido reacionário e o partido democrático, respectivamente - cujo resultado seria a criação de um novo positivo, sem relação com o antigo. Portanto, para Bakunin, não haveria síntese ou conciliação possível entre o positivo e o negativo. Seria pela negação que se forjaria a afirmação, ou seja, visando a destruição, se construiria o novo.

Fundamental para seu sistema foi também o materialismo como método de análise da realidade. Partindo daquilo que entendia como material, ou seja, a realidade de maneira geral, incluindo os seres vivos na sua totalidade, Bakunin afirmava que um método de análise coerente precisaria ser materialista para dar conta da realidade, e isso exigia considerar o ser humano como um ser completo, dotado de pensamento e ação, cuja realidade dos fatos seria determinada por essa relação dialética entre o pensar e o fazer, entre a teoria e a prática. Esse materialismo, que se opõe ao idealismo - considerando-o um sistema que parte de Deus, do abstrato, do metafísico - não significa, ainda assim, determinismo econômico.

Bakunin considera ainda que há uma diferença fundamental entre ciência e ideologia. Como colocado, a ciência é um elemento fundamental para o desenvolvimento da humanidade; no entanto, quando se fala das ciências humanas, elas nunca podem ser absolutas, visto que não há simplesmente o fato em si, mas a observação deste fato por um ser humano, dotado de uma determinada carga de valores. Como Bakunin colocou, a vida é sempre mais complexa do que a nossa capacidade de apreender a realidade. É possível buscar uma elaboração teórica, com o maior rigor científico, da história, e também dos fatos presentes, mas deve-se levar em conta que essa teoria não pode afirmar-se como verdade ou ciência absoluta. E, ainda que exista a possibilidade de, por meio da ciência, compreender a história e a realidade, é impossível tentar extrair da história regras gerais ou uma ciência de seu funcionamento para a explicação da realidade, e, fundamentalmente, para prever o futuro. Dessa maneira, o socialismo não pode ser ciência, mas sim uma doutrina, ou uma ideologia, no sentido de conjunto de idéias, valores, aspirações que possuem uma interação prática com a realidade. Ele não pode ser abarcado por um conjunto científico de regras e possui elementos que não podem ser comprovados empiricamente.

A LEITURA DA REALIDADE

Considerando os elementos colocados em seus pontos de partida, vejamos como Bakunin elaborou uma leitura da realidade de seu tempo, cujos esforços empenharam-se, dentre outras coisas, no sentido de compreender o capitalismo. Para ele, o fundamento do sistema capitalista está na propriedade privada e no capital, que significam "o poder e o direito de viver à custa da exploração do trabalho alheio, o direito de explorar o trabalho daqueles que não possuem propriedade ou capital e que, portanto, são forçados a vender sua força produtiva aos afortunados detentores de ambos".[4] O capitalismo sustenta a desigualdade e, conseqüentemente, gera a pobreza dos explorados que, sendo obrigados a viver do trabalho assalariado, ainda que juridicamente sejam iguais aos capitalistas, economicamente estão subjugados e, na concorrência do mercado, não têm alternativa senão deixarem-se explorar para não morrerem de fome. A dinâmica do sistema capitalista cria e sustenta uma divisão do trabalho (manual e intelectual) e também das classes sociais, separando a sociedade em exploradores e explorados, e colocando-os em contradição e em luta.

Nas sociedades em que predomina a dominação - e esse é o caso do capitalismo - Bakunin sustenta haver classes sociais em permanente luta; assim, acredita que há, na sociedade capitalista, uma luta de classes. Esse antagonismo entre as classes não poderia ser negado com base na "idéia de que [este] é um antagonismo mais fictício do que real, ou de que é impossível estabelecer uma linha de demarcação entre as classes possuidoras e as classes despossuídas"[5]. Todo um sistema político e ideológico dá sustentação a este sistema de exploração econômica, que é "protegido por todos os Estados [...], religiões e todas as leis jurídicas, tanto criminais quanto civis, e todos os governos políticos, monarquias e repúblicas - com seus imensos aparatos judiciais e policiais e seus exércitos permanentes"[6]. Os sistemas políticos e ideológicos não têm outra missão senão a de consagrar e proteger as práticas da exploração capitalista, constituindo-se, portanto, parte estrutural do capitalismo.

O Estado, para Bakunin, é o instrumento político do capitalismo, da burguesia, que estabelece sobre o povo uma dominação, que, além de sustentar o capitalismo, aliena os indivíduos da política. Ele enfatiza: "quem diz Estado, diz necessariamente dominação e, em conseqüência, escravidão; um Estado sem escravidão, declarada ou disfarçada, é inconcebível; eis por que somos inimigos do Estado."[7] E isso se aplica a qualquer Estado, seja ele mais ou menos democrático, já que "nenhum Estado, por mais democráticas que sejam as suas formas, mesmo a república política mais vermelha, popular apenas no sentido desta mentira conhecida sob o nome de representação do povo, está em condições de dar a este o que ele precisa, isto é, a livre organização de seus próprios interesses, de baixo para cima, sem nenhuma ingerência, tutela ou coerção de cima".[8] Outras formas de dominação estariam presentes na sociedade: o imperialismo, a religião, o patriarcado, o racismo. A superação do capitalismo e do Estado não deveria deixar de fora a superação da dominação como um todo, algumas com mais, e outras com menos relação com o sistema político e econômico.

Nesse sentido, o conjunto de classes despossuídas para Bakunin abarcaria todos aqueles que estavam sofrendo os efeitos do capitalismo e mesmo dos sistemas pré-capitalistas que ainda vigoravam em sua época. Dessa forma, seu conceito de classe é amplo e está mais fundamentado na categoria dominação, do que na exploração econômica. Assim, ele acredita que as "diferentes existências políticas e sociais deixam-se hoje reduzir a duas categorias principais, diametralmente opostas uma à outra, e inimigas naturais uma da outra"; de um lado, o que se poderia chamar de classes possuidoras, burguesia, capitalistas ou classes políticas, "compostas por todos os privilegiados, tanto da terra quanto do capital, ou mesmo somente da educação burguesa", e de outro, o que se poderia chamar de classes despossuídas, proletariado, povo, ou classes operárias, "deserdadas tanto do capital quanto da terra, e privadas de qualquer educação ou de qualquer instrução".[9] Portanto, no conjunto dos dominadores estão os aristocratas, burgueses, grandes proprietários de terra e fazendeiros e no conjunto de dominados, os trabalhadores da cidade e do campo, o campesinato e toda a massa de excluídos (chamada de lumpemproletariado). Além disso, vemos que a definição de classe de Bakunin não está totalmente vinculada aos meios de produção: a instrução, por exemplo, assim como a participação na gestão do Estado, ajudariam a compor este critério de classe que explicaria a dominação em um sentido amplo, englobando os campos econômico, político e social.

A partir desta concepção, Bakunin acredita que é esse conjunto de despossuídos que será responsável pela criação da nova sociedade. Na luta contra o capitalismo, o Estado e as outras formas de dominação, os despossuídos devem destruir a velha sociedade e construir a nova. Nessa concepção, que traz a tona novamente sua dialética, ele acredita que o elemento negativo da sociedade presente, ou seja, aqueles que negam essa sociedade - o povo em luta -, deve ter por objetivo superar o positivo, ou seja, a sociedade presente, criando um novo positivo - a sociedade futura. Bakunin não acreditava que essa sociedade seria uma síntese; ela precisaria romper com todos os aspectos da sociedade presente, criando, de fato, uma nova. Além disso, ele pensava que aqueles que defendiam essa nova sociedade como sendo uma síntese corriam o risco de cair no reformismo ao tentar conciliar o inconciliável. Nesse processo revolucionário de criação do socialismo, o Estado deveria ser imediatamente destruído, nunca servindo como instituição que daria suporte a qualquer período intermediário. Bakunin acredita que é todo o conjunto de despossuídos que tem essa tarefa histórica de transformação social, e não somente um setor dele. Assim, nega qualquer prioridade no proletariado industrial e urbano e acredita que outros setores dominados deveriam, juntos com esse proletariado, empreender a revolução social.

Negando qualquer forma de "etapismo", Bakunin não acredita em um desenvolvimento histórico linear ou previsível. Para ele, a vontade - ou seja, "o poder de tomar partido em favor de um ou vários motores que nele trabalham num sentido determinado, contra outros motores igualmente interiores e determinados"[10] - seria um elemento fundamental, que levaria homens e mulheres, a partir dos seus instintos de busca pela liberdade, para uma luta contra a realidade e para sua superação. Não acreditava, portanto, como outros socialistas, que há obrigatoriamente uma necessidade de desenvolvimento das forças produtivas para que se chegue ao socialismo - Bakunin não acreditava que nas sociedades menos desenvolvidas se deveria promover o capitalismo, para depois se lutar pelo socialismo. Acreditava que tanto nas sociedades mais desenvolvidas, quanto nas menos, os despossuídos deveriam imediatamente empreender uma luta pelo socialismo.

Além disso, sua análise materialista da realidade o fazia crer que no passado e no presente, com uma análise rigorosa da história e da conjuntura, não podia ser verificada uma determinação econômica sobre as esferas política e cultural/ideológica. Seu materialismo reconhece a influência mútua das esferas econômica, política e cultural/ideológica; a econômica, por mais que fosse realmente determinante em muitos casos - e Bakunin assume que, dentre as esferas, a econômica é a que possui maior influência sobre as outras -, em diversos outros casos, seria determinada pelas esferas política e cultural/ideológica, em um movimento dialético que não estabeleceria causas e conseqüências fixas, determinadas a priori. Seu método de análise, portanto, não pode se resumir ao determinismo econômico. Para seu projeto de transformação seria fundamental o desenvolvimento de uma teoria, que se construiria a partir de uma relação dialética com a prática do povo, e também de uma estratégia de luta, com o objetivo de superar a sociedade capitalista, estatista, religiosa, etc. e chegar a uma nova - socialista, federalista, antiteísta.


A ESTRATÉGIA

Para empreender uma luta rumo ao socialismo, os despossuídos deveriam conceber uma forma de tornar sua força elementar, espontânea, muito maior do que aquela das classes possuidoras, uma força social real. Portanto, "a primeira condição da vitória do povo é a união ou a organização das forças populares"[11]. Seriam os movimentos de massa, para Bakunin, que conseguiriam transformar-se nesta força social real necessária para a revolução social, já que "nenhuma revolução pode triunfar senão exclusivamente pela força do povo"[12].

Bakunin desenvolveu a maioria de suas concepções organizativas e estratégicas deste movimento quando entrou na AIT. Segundo acreditava, um movimento popular precisava ser organizado internacionalmente, reunindo o maior número possível de elementos das classes despossuídas, apoiando-se, fundamentalmente, na "intensidade sempre crescente das necessidades, dos sofrimentos e das reivindicações econômicas das massas".[13] Nisso, haviam estado corretos os fundadores da AIT, colocando, "de início, como único fundamento, apenas a luta exclusivamente econômica do trabalho contra o capital"[14]. No entanto, quando se trata de unir o povo em um movimento que mobilize em torno das necessidades econômicas, as questões políticas(ideológicas) e religiosas mais dividem do que unem. Assim, Bakunin defendia um modelo de organização de massas que não excluísse trabalhadores por suas posições político-ideológicas ou por suas crenças religiosas, ainda que se permitisse a discussão aberta dessas questões.

Essa organização envolveria as associações de trabalhadores, unindo-os em torno de questões como a produção, o consumo, o crédito; iniciativas que habituariam os trabalhadores a cuidar e gerir seus próprios assuntos, algo fundamental na sociedade futura. Mas essa não era a base do movimento: este deveria se dar na mobilização destas associações de trabalhadores em torno das lutas de curto prazo, que dariam consciência de classe aos trabalhadores, permitindo que eles se radicalizassem no contexto dessas lutas, buscando, cada vez mais, os objetivos de longo prazo, ou seja, a revolução social e o socialismo. Bakunin, portanto, não defendia um "tudo ou nada" em que ou se realizava a revolução ou o movimento popular não tinha sentido; para ele, era na construção cotidiana e no contexto das lutas de curto prazo que os caminhos de longo prazo deveriam ser trilhados. Com a organização e as lutas das associações, os trabalhadores exercitariam sua capacidade de autogestão, fundamental para que eles próprios fossem responsáveis por sua própria emancipação. Além disso, no contexto das lutas reivindicativas, os trabalhadores conheceriam sua própria força e a força coletiva dos trabalhadores, compreenderiam a luta de classes, tornando-se cada vez mais conscientes, e buscariam, cada vez mais, a transformação social revolucionária.

Bakunin acreditava que "a partir do momento que um operário [...] começa a lutar seriamente pela diminuição de suas horas de trabalho e pelo aumento de seu salário, a partir do momento que começa a interessar-se vivamente por essa luta toda material" ele certamente abandona suas crenças religiosas e, na luta econômica, ele conhecerá a força dos trabalhadores e seus verdadeiros inimigos de classe. Termina por "compreender o antagonismo irreconciliável" da luta de classes, aproximando-se do socialismo revolucionário.[15]

Para fortalecer e impulsionar esse movimento de massas, Bakunin defendia um modelo de organização política (partido). Esse grupo de revolucionários seria responsável por atuar em meio às massas, sevindo de motor/fermento; por meio da promoção de um programa determinado - que, basicamente defendia posições filosóficas, teóricas e estratégicas - a organização política não deveria se dedicar à participação nas eleições, à tomada do Estado e nem a fazer a revolução em nome das massas. Ela teria por função estimular e dirigir as massas, provocando a revolução em seu seio sem subjugá-las; a função da organização política seria dar protagonismo às massas.

Historicamente, Bakunin foi responsável por impulsionar organizações políticas sendo a mais destacada delas conhecida pelo nome de Aliança da Democracia Socialista (ADS). Trabalhando de maneira pública e secreta, fundamentalmente no seio da AIT, a ADS visava dar a ela "uma organização revolucionária, para a transformar, a ela e a todas as massas populares que estão fora dela, numa força suficientemente organizada para aniquilar a reação político-clérico burguesa, para destruir todas as instituições econômicas, jurídicas, religiosas e políticas dos Estados". Para isso, seriam fundamentais as organizações políticas, compostas "por membros mais seguros, mais dedicados, mais inteligentes e mais enérgicos" e possuindo um duplo objetivo:
"primeiro, a formação da alma inspiradora e vivificante deste grande corpo a que chamamos Associação Internacional dos Trabalhadores" e depois "se ocuparão dos problemas que são impossíveis de se tratar publicamente. Eles formarão a ponte necessária entre a propaganda das teorias socialistas e a prática revolucionária."[16]

Esse modelo estratégico deveria impulsionar a sociedade para uma transformação social revolucionária que, por meio da violência organizada e protagonizada pelo povo, destruiria os sistemas de dominação e construiria o socialismo. Para Bakunin, esse socialismo só poderia ser construído "de baixo para cima", ou seja, a partir das necessidades das bases, com a propriedade coletiva e fundamentado no trabalho coletivo. Decisões econômicas e políticas deveriam ser tomadas pelas bases, em um sistema que desse força para a participação política popular e que se articulasse por meio da delegação. Este socialismo federalista, acreditava Bakunin, realizaria a liberdade completamente.

Felipe Corrêa


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NOTAS:

1. Mikhail Bakunin. Deus e o Estado. São Paulo: Imaginário, 2000, p. 25. Todos os
textos citados são de autoria de Bakunin e por isso suprimirei todas as referências
a seu nome nas notas a seguir.

2. "O Império Cnuto-Germânico". In: Daniel Guérin (org.) Textos Anarquistas. Porto
Alegre: LP&M, 2002 p. 47.

3. "A Comuna de Paris e a Noção de Estado". In: O Princípio do Estado e Outros
Ensaios. São Paulo: Hedra, 2008, pp. 115-116.

4. O Sistema Capitalista. São Paulo: Faísca, 2007, p. 4.

5. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo. São Paulo: Cortez, 1988, pp. 15-16.

6. O Sistema Capitalista, p. 4.

7. Estatismo e Anarquia. São Paulo: Imaginário/Ícone, 2003, p. 212.

8. Ibidem, p. 47.

9. Federalismo, Socialismo e Antiteologismo, p. 16.

10. "Consideraciones filosóficas sobre el fantasma divino, sobre el mundo real y
sobre el hombre". In: Obras Completas. Madrid, La Piqueta, 1979, p. 198.

11. A Ciência e a Questão Vital da Revolução. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2009, p.
67.

12. A Política da Internacional. São Paulo: Imaginário/Faísca, 2008, p. 67.

13. "La Organización de la Internacional". In. Frank Mintz (org.). Bakunin: critica
y acción. Buenos Aires: Anarres, 2006, p. 102.

14. A Política da Internacional, p. 46.

15. Ibidem, pp. 53-54.

16. "Necessidade e Papel do Partido". In: Conceito de Liberdade. Porto: Rés
Editorial, 1975, p. 154.