A proposta de transformação social em Malatesta tem como guia o anarquismo. Sendo este entendido pelo italiano não como sistema filosófico, mas como ideologia, possuindo então o objetivo transformar a realidade do sistema capitalista e estatista em socialismo libertário, ou como ele se referia, em “anarquia”, sendo ela entendida como “sociedade organizada sem autoridade”. Dessa maneira, o “anarquismo é o método para realizar a anarquia”.[1]
Assim compreendido, o anarquismo de Malatesta é voluntarista, ou seja, não se baseia na concepção de que o socialismo, ou mesmo a anarquia, é inevitável, ou uma conseqüência obrigatória do desenvolvimento da sociedade. Baseia-se, ao invés disso, na concepção de que só a vontade organizada do povo é capaz de produzir a transformação social necessária, realizando a revolução social e abrindo caminho ao socialismo com liberdade.
Para Malatesta, o socialismo é um sistema em que “ninguém possa explorar o trabalho de outrem, graças à monopolização dos meios de produção; que ninguém possa impor sua própria vontade a outros por meio da força bruta ou, o que é pior, graças à monopolização do poder político”.[2] A liberdade, ou “liberdade social” é a “igual liberdade para todos, e uma igualdade de condições que possa permitir a todos e a cada um agir como bem entende, tendo, como único limite, o que impõem as necessidades naturais inelutáveis e a igual liberdade de todos”.[3]
Malatesta, para a realização desta transformação, concebeu uma certa estratégia que buscava encontrar os meios necessários para que chegasse ao fim desejado. Tratou, insistentemente, da questão da organização, polemizando com anarquistas individualistas e anti-organizacionistas, argumentando que “permanecer isolado, agindo ou querendo agir cada um por sua conta, sem se entender com os outros, sem preparar-se, sem enfeixar as fracas forças dos isolados, significa condenar-se à fraqueza, desperdiçar sua energia em pequenos atos ineficazes, perder rapidamente a fé no objetivo e cair na completa inação”[4] Para ele, o remédio contra a exploração, e mesmo contra o isolamento, é a organização.
Concebida como “coordenação de forças com um objetivo comum, e obrigação de não promover ações contrárias a este objetivo”[5] a organização é a única forma de articular o povo, transformando a força que nele está latente em força real. Com organização, pode haver aumento progressivo desta força social, oferecendo a possibilidade de imprimir à sociedade tal transformação social desejada.
Desta forma, a organização é pensada em quatro perspectivas “a organização em geral, como o princípio e condição da vida social, hoje, e na sociedade futura; a organização do partido anarquista e a organização das forças populares.”[6] A organização do sistema atual, ou seja, o ponto de partida, a organização da sociedade futura, ou seja, o ponto de chegada. Neste esquema estratégico, entram a organização das forças populares e do próprio anarquismo como meios de se sair de onde está para se chegar onde se deseja.

Para tanto, segundo o italiano, a organização anarquista deve buscar inteiração com estes movimentos populares, que na sua época eram mais claramente identificados nos sindicatos. Este âmbito social – constituído pelos movimentos sociais ou “movimentos de massa”, como eram conhecidos – se devidamente organizado, pode promover a revolução social. Apesar disso, recomendava Malatesta que estes movimentos não devem ser “ideologizados” pelos anarquistas – ele não defendia, por exemplo, sindicatos anarquistas – mas sim, serem o espaço privilegiado de propaganda ideológica do anarquismo. Portanto, uma inteiração entre a organização anarquista e os movimentos populares não anarquistas seria inevitável.
A partir desta inteiração, escreveu Malatesta, “queremos agir sobre ela [a massa] e impeli-la ao caminho que acreditamos ser o melhor, mas como nosso objetivo é libertar e não dominar, queremos habituá-la à livre iniciativa e à livre ação”.[9] Considerando a organização anarquista uma organização de minoria ativa, que atua no seio dos movimentos populares de forma antiautoritária, Malatesta defende sua posição:
"Não queremos ‘esperar que as massas se tornem anarquistas’ para fazer a revolução; tanto mais de que estamos convencidos de que elas nunca se o tornarão se inicialmente não derrubarmos, pela violência, as instituições que as mantêm em escravidão. Como precisamos do concurso das massas para constituir uma força material suficiente, e para alcançar o nosso objetivo específico que é a mudança radical do organismo social graças à ação direta das massas, devemos nos aproximar delas, aceitá-las como elas são e, como parte das massas, fazê-las ir o mais longe possível. Isso, se quisermos, evidentemente, trabalhar de fato para realizar, na prática, nossos ideais, e não nos contentar em pregar no deserto, para a simples satisfação de nosso orgulho intelectual."[10]
Portanto, desta forma, é inevitável um confronto do anarquismo, manifesto por meio da organização anarquista, com a realidade da luta de classes, onde estão pessoas de ideologias diferentes. Assim, este “anarquismo social” de Malatesta, longe de fechar-se em si mesmo, amplia-se, buscando influenciar os movimentos e lutas sociais o quanto for possível, por meio da propaganda, fazendo com que funcionem “da maneira mais libertária possível”. Isto significa, na prática, influenciá-los às práticas classistas, combativas, autônomas, de ação direta e democracia direta.
Nesta inteiração do âmbito político com o social, Malatesta recomendava aos anarquistas não confundirem os meios (os movimentos populares) com os fins (o socialismo libertário). Dizia ele que “o movimento operário não é mais do que um meio – embora não há dúvida de que é o melhor meio de que dispomos. Mas eu me recuso a aceitar esse meio como um fim.”[11] Os anarquistas devem, portanto, “seguir sendo anarquistas manter-se sempre em entendimento com os anarquistas e lembrar que a organização operária não é um fim, mas simplesmente um dos meios, por importante que seja, para preparar o advento da anarquia”[12]. Por este motivo, parte do trabalho da organização anarquista, quando em contato com os movimentos populares, é defender uma visão de longo prazo, ou seja, um projeto político revolucionário que faça do movimento um meio para a sociedade futura e não um fim em si mesmo. No entanto, este meio constituído movimentos em luta, ao invés de buscar somente um fim distante, do socialismo libertário, é também responsável pela mobilização que deve conquistar e promover a melhoria das vidas do povo. Assim, são incitados “os trabalhadores a querer impor todas as melhorias possíveis e impossíveis, e é por isso que gostaríamos que eles não se resignassem a viver em más condições hoje, esperando o paraíso futuro”.[13] Para que estas conquistas aconteçam, Malatesta recomenda:
"é preciso arrancar do governo e dos capitalistas todas as melhorias de ordem política e econômica que podem tornar menos difíceis para nós as condições da luta e aumentar o número daqueles que lutam conscientemente. É preciso, portanto, arrancá-las por meios que não impliquem o reconhecimento da ordem atual e que preparem o caminho ao futuro."[14]
A luta de classes, expressa na luta dos movimentos populares, pode então melhorar imediatamente a vida daqueles que estão em luta, mas também pode ser a força que aponta para a revolução social.
Malatesta colocava ser impossível a separação da revolução social e da violência. Enfatizava, que esta revolução, “conduzida como a concebem os anarquistas, é a menos violenta possível; ela procura interromper toda violência tão logo cesse a necessidade de opor a força material à força material do governo e da burguesia”[15]. Tão logo o funcionamento do socialismo libertário esteja garantido, a violência deverá ser interrompida. Continua Malatesta sobre a violência, enfatizando:
"Os anarquistas só admitem a violência como legítima defesa; se hoje eles são a favor da violência é porque consideram que os escravos estão sempre em estado de legítima defesa. Mas o ideal dos anarquistas é uma sociedade na qual o fator violência terá desaparecido completamente e este ideal serve para frear, corrigir e destruir este espírito de violência que a revolução, como ato material, teria a tendência a desenvolver."[16]
Grande parte dos escritos de Malatesta busca ainda advertir para os meios equivocados de se buscar a transformação social. Em especial, como foi muito colocado por toda tradição clássica anarquista, a incapacidade de o Estado ser um meio adequado para a transformação social, posição defendida pela escola autoritária do socialismo durante toda a história. Independente se a “conquista” do Estado é feita pela revolução ou por meios reformistas, o fato é que Malatesta também defendeu, assim como Bakunin no seio da AIT, que a partir do momento que se conquista o Estado, aqueles que querem ser protagonistas da transformação, terminam como uma nova classe de exploradores. Em relação aos revolucionários, Malatesta fez críticas à concepção autoritária de socialismo, que considera o Estado e a ditadura como meios de se chegar ao comunismo. Para Malatesta, a posição dos comunistas autoritários sustenta “a ditadura de um partido, ou melhor, dos chefes de um partido; é uma ditadura verdadeira, no sentido próprio do termo, com seus decretos, suas sanções penais, seus agentes de execução e, sobretudo, sua força armada”.[17]
Em relação à estratégia eleitoral dos socialistas reformistas, colocou que “somos firmemente contrários a toda participação nas lutas eleitorais e a toda colaboração com a classe dominante; queremos aprofundar o abismo que separa o proletariado do patronato e tornar a luta de classes cada vez mais aguda”[18]. Os reformistas, quando se propuseram à conquista do poder político do Estado pelas eleições, “não podiam senão moderar cada vez mais seu programa, pôr-se a estabelecer relações de colaboração mais ou menos disfarçada com as classes burguesas, procurar amigos e proteção nas esferas governamentais, sufocar o espírito revolucionário que despertavam nas massas”.[19]
Assim, por meio da discussão dos meios adequados e não adequados para a transformação social desejada pelos anarquistas, Malatesta defende a máxima libertária, da coerência entre fins e meios, quando escreve que “os fins e os meios estão intimamente ligados, sem dúvida nenhuma, se bem que a cada fim corresponde, de preferência, tal meio, ao invés de tal outro; assim, também, todo meio tende a realizar o fim que lhe é natural, inclusive fora da vontade daqueles que empregam este meio, e contra ela”.[20]
Nada mais atual, se observarmos com cuidado a história.
Felipe Corrêa
Notas::
1. Errico Malatesta. “Anarquismo y Anarquia”. Excerto de Pensiero e Volontà, 1 de setembro de 1925. In: Vernon Richards. Malatesta: pensamiento y acción revolucionarios. Buenos Aires: Anarres, 2007 p. 21.
2. Idem. “Socialismo e Anarquia”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas. São Paulo: Cortez, 1989 p. 7.
3. Idem. “Enquanto Isso...”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 101.
4. Idem. “A Organização II”. In: Escritos Revolucionários. São Paulo, Imaginário, 2000 p. 55.
5. Ibidem. p. 59-60.
6. Idem. “A Organização I”. In: Escritos Revolucionários p. 49.
7. Idem. “A Organização II”. In: Escritos Revolucionários p. 55.
8. Idem. “Ação e Disciplina”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 24.
9. Idem. “Enfim! O que é a ‘Ditadura do Proletariado’”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 87.
10. Idem. “A Propósito da Revolução”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 55.
11. Idem. “Sindicalismo: A Crítica de um Anarquista”. In: George Woodcock (org). Os Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre: LP&M, 1998 p. 208.
12. Idem. “Los Anarquistas y los Movimientos Obreros”. Excerto de Pensiero e Volontà, 16 de abril de 1925. In: Vernon Richards. Malatesta: pensamiento y acción revolucionarios p. 122.
13. Idem. “Quanto Pior Estiver, Melhor Será”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 67.
14. Idem. “‘Idealismo’ e ‘Materialismo’”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 141.
15. Idem. “Uma Vez Mais sobre Anarquismo e Comunismo”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 70.
16. Ibidem.
17. Idem. “Carta a Luigi Fabbri sobre a ‘Ditadura do Proletariado’”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 60.
18. Idem. “Os Anarquistas e os Socialistas – Afinidades e Oposições”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 32.
19. Idem. “No Campo Socialista”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 45.
20. Idem. “Socialismo e Anarquia”. In: Anarquistas, Socialistas e Comunistas p. 6.